Na adolescência, conheci um rapaz que estava literalmente aprendendo a enxergar. Ele nasceu cego, mas graças a um transplante de córnea, recuperou uma boa porcentagem da visão de um dos olhos.
Uma tarde, estava calor, a gente foi no Lanches Rolê tomar alguma coisa e eu me lembro como se fosse hoje. Ele abriu a geladeira desconfiado, pegou a lata, sentiu o peso, atentou ao barulho do lacre abrindo, cheirou e concluiu: é Coca-Cola. Aquele cilindro vermelho (tão icônico) por si só não significava nada! Para reconhecer as pessoas que sempre estiveram ao seu lado, ele precisava ouvir as vozes, associar as novas imagens e fixar na memória. Nada ao redor era óbvio. Tudo precisava ser ressignificado.
No tempo que convivemos, aprendi muito, inclusive que sempre posso reaprender a enxergar. Não que seja fácil, é trabalhoso como qualquer outro aprendizado!
A gente ouve muito “se ame”, “se aceite”, “seja mais você”, “honre seu corpo”, “não ligue se te olham” e tudo isso é maravilhoso mesmo. Mas a maioria de nós aprendeu a odiar o próprio corpo durante a vida toda. A encolher a barriga, tapar as espinhas, tirar os pelos, clarear as manchas, esconder o sangue, pintar os brancos, preencher as rugas, levantar aqui, diminuir ali, abdicar do tempo do ciclo da natureza.
Lembrando dessa história, percebo que antes de amar algo que acreditamos que só nos dá trabalho e vergonha, precisamos urgentemente reaprender a enxergar.
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